Da Rosalina para a Rosalina

Disseram-me para escrever aqui, nesta coisa, é um blogue, não é? Bom, deve ser. Foi a menina Sofia que disse para o fazer. Ela é boa moça, coitadita, muito bonita, mas tem cá uma língua... É, é! Estava sempre a tentar pôr a Montserrat contra mim, que eu bem sei. Ela pensava que eu não me dava conta, mas eu percebia tudo... é que eu estou sempre muito atenta! Bom, mas isso não interessa nada agora. O que interessa é que a menina Sofia me pediu... quer dizer, pedir, pedir não é bem o termo, ela fez-me um ultimato e, ó filhos, eu não estou para ter problemas com a míuda, que até é boa moça! Apesar de ser um bocado linguaruda e gostar de criar conflitos, mas isso agora não interessa nada.
Bom, como eu estava a dizer, a míuda “pediu-me” para falar um bocadinho da minha vida e cá estou eu. Eu até não gosto nada de falar de mim e da minha vida, mas se é preciso, olha cá vai. Ah, mas é verdade, ainda não expliquei porquê. Eu explico: é que a minha sobrinha, a Rita, vai ter um bebé. É, engravidou! Também já não era sem tempo, a rapariga já tem trinta anos. Bom, e então ela precisa da minha companhia e ajuda, mas só até à criança nascer, que eu gosto mesmo é de animais. É, é! As crianças são muito lindas, mas é para os pais as aturarem e depois dos anos que eu passei a educar os filhos dos outros, foi-se me a paciência. Então eu vou lá passar uns meses a casa dela, que até me faz bem à cabeça, porque a Montserrat às vezes mói-me muito o juízo! É que é muito agressiva! E pelo menos, lá em casa da minha sobrinha posso dar de comida aos pombinhos lá da frente sem ninguém me chatear!
Bom, por causa disso pedi à minha prima do Seixal, a Rosalina (a nossa madrinha não tinha muita imaginação, então deu o mesmo nome às afilhadas todas!), para vir cá para casa tomar conta da Montserrat. É porque a Montserrat parece um bebé, é que não faz nada sozinha! É, é! Ela parece muito senhora de seu nariz, mas sem mim não é nada! Bom, e como eu não vou poder estar com ela, pedi à minha prima, que é muito boa moça e ainda está boa para ir à rua comprar o jornal e o pão, para ir lá para casa estes meses. E, felizmente, ela aceitou. É que se não aceitasse era um sarilho, que eu não a podia deixar sozinha! Só que a Montserrat, que é teimosa como uma porta, não pode perceber desta nossa troca, é que vai logo dizer que não precisa de ninguém, que está muito bem sozinha e por aí adiante. Então, eu e a minha prima combinámos que ela fazia de mim e, como a Montserrat não vê nada bem, nem se vai aperceber. Só que para isso tenho que a pôr a par de algumas coisas da minha vida, não vá a Montserrat (que é mais esperta que o sei lá, danada, danada mesmo!) pôr-se a fazer perguntas para ver se sou mesmo eu.
Então, cá vai:



Prima Rosalina do Seixal,

Depois da morte da minha mãe, o meu pai tinha falecido havia já alguns anos, fui para Barcelona. A minha mãe tinha-me feito prometer que depois de acabar o curso de professora ía viajar pela Europa e como tinha ficado com algum dinheiro (como sabes, o meu pai era diplomata e ganhava bem, assim que deu para termos uma vida bem boa!) assim foi. Instalei-me, lá em Barcelona, em casa de uma amiga da minha mãe, a Dueña Maria, que me alugou um quarto bem jeitoso. A Dueña Maria alugava mais quartos a raparigas solteiras, então aquela casa estava cheia de moças novas! Um dia apareceu lá a Montserrat, toda muita engraçada, com uns caracóis todos vivos, toda muito pintada, e já não havia mais quartos para alugar. E eu, não sei bem porquê, tive pena da moça e disse que ela podia dividir o quarto comigo, que ele era bem grande e dava para as duas à vontade. Ela não se fez de rogada e abancou-se logo. E assim foi, dividimos quarto para mais de três anos!
Eu lá comecei a estudar espanhol e a conhecer alguns colegas, quase todos vindos de outros países da Europa. Eu era muito atadinha, mas a Montserrat, que a sabia toda, começou a dar-me umas lições de “viver a vida” e eu lá fui aprendendo... ora, também nunca fui burra! Para começar cortou-me o cabelo, parecia logo outra, mais moderna! Depois emprestava-me as roupas dela, pintava-me, olha, eu parecia uma boneca nas mãos dela!
A Montserrat, que vinha lá de uma aldeia perto, tinha vindo para Barcelona porque queria ser artista, gostava muito de cantar, e cantava bem! Mas, como ela não tinha assim posses, já nem tinha quase família nenhuma, precisava de ganhar sustento e lá foi para uma empresa trabalhar como telefonista. Mas à noite, arranjava-se toda e calcarroava os bares e clubes nocturnos, arrastando-me pelo braço, para tentar arranjar quem apostasse nela como cantora. Tinha uma força de vontade, a rapariga! Nessas saídas nocturnas acabámos por conhecer muita gente, muitos artistas. Comecei a fumar e a beber, como a Montserrat, e acabámos por fazer um grupo de amigos aspirantes a artistas. Sonhávamos todos em montar um grupo de música de dança com várias cantoras (a Montserrat convenceu-me!) e ainda chegámos a ensaiar. Queríamos estrear-nos na “Paloma”, que era assim o clube de baile mais interessante em Barcelona. Ai, o que nós gastámos as solas dos sapatos naquele chão. Bailávamos sem parar a noite inteira, eu nem sei como é que os nossos pés se aguentavam! E depois fazíamos viagens em grupo: fomos a Sevilla (aquilo é que foi um fim-de-semana!), viemos a Portugal (os meus amigos de cá ficaram todos malucos com a Montserrat, acho que nunca tinham visto uma mulher assim, tão fogosa e brilhante!) e sei lá mais aonde é que a gente foi!
Bom, foram tempos muito lindos. Mas aquela vida não podia durar sempre. Acabei por me apaixonar por um desses homens elegantes e galãs que vivem à noite, que dançava como um anjo, que me fez crer que eu era a mulher da vida dele e eu, que bem tolinha era, caí que nem um patinho. Só tinha olhos para ele! Ah, pois, ele fazia-me sentir uma mulher lindíssima. Comecei a ficar vaidosa. Comprava roupas para ficar bonita para ele e ele elogiava-me e fazía-me sonhar. Dízia que se ía casar comigo, que íamos viajar juntos pelo mundo e eu sei lá mais o quê! Até que um dia caí do cavalo e acordei deste sonho: descobri que o anjo era um diabo que corria atrás de vários rabos de saia e prometia mundos e fundos a todas. Ai! Quando descobri isto sofri muito. Ao princípio nem queria acreditar como é que me tinha deixado levar por aquele homem! A Montserrat ajudou-me muito, queria levar-me a passear, a conhecer outras pessoas, a divertir-me, como fazíamos antes, mas eu estava magoada e já nada tinha brilho para mim.
Por isso, vim-me embora de Barcelona e nunca mais lá voltei. No fundo, vim para Lisboa para fugir dele, pois tinha medo de cair nas suas garras outra vez e se me queria dar ao respeito, não o podia fazer! Comecei a trabalhar como professora primária, comecei a gostar do trabalho e das crianças (que não eram como as de agora que não sossegam um bocadinho). Era uma vida completamente diferente da que tinha vivido em Barcelona, mas pelo menos dava-me sossego, que era o que eu precisava! Fiquei a viver na casa que era da minha mãe e lá vivi, na companhia dos meus animais, durante algum tempo. Eu e a Montserrat continuamos a escrever-nos, mas ela nunca me falava muito da sua vida pessoal.
Só sei que um dia me tocam à campaínha e lá estava a Montserrat! Estava ainda bonita, bem mais velha claro, mas bem arranjada como sempre. Vinha-me fazer uma visita. Foi uma grande alegria. Passeámos por Portugal, apresentei-lhe os meus amigos, os vizinhos e ela foi ficando, ficando. Não sei bem como, mas quando demos por ela já vivíamos as duas nesta casa. E ainda bem! Porque, não sei o que é que aconteceu, passado algum tempo os meus bichinhos (o gato, a cadela, os piriquitos e os bichos-da-seda) morreram todos. Eu andava tão triste que se não fosse a Montserrat estar cá comigo tinha ficado muito sozinha. E lá me aguentei! Lá nos aguentámos, uma à outra, até hoje! E olhem que não sei bem como, porque ela tem cá um feitio que não é nada fácil! O que vale é que eu tenho muita paciência, se não eu não sei o que seria de nós!
Bom, prima Rosalina, acho que sabendo tudo isto da minha vida já é suficiente para que a Montserrat não desconfie de nada. Obrigada por teres acorrido ao meu pedido, pois se não viesses eu não sei como é que ía fazer para deixar a Montserrat e ir tomar conta da minha sobrinha parideira. Se precisares liga-me quando a Monserrat estiver a dormir! Não te preocupes com os teus bichinhos que eu já falei com a minha sobrinha e ela leva-me lá ao Seixal de carro para eu lhes dar de comer! Eu sei que vais sentir muito a falta deles, nem sabes como eu te percebo!
Mais uma vez obrigada e aproveita esta temporada com a Montserrat, que apesar de ter aquele feitio de cão, quando quer é divertida como o raio! Já sabes qual é o pão e o jornal de que ela gosta, não te enganes, se não estás tramada!
Muitos beijinhos e falamos em breve!

A tua prima e sempre amiga,
Rosalina Esteves

Ps- Tem cuidado com a mocinha Sofia, é muito boa moça, mas já sabes...
Pps- Não te preocupes com a casa que o electricista e a menina Sara tomam conta de tudo.
Ppps- Cuida bem da Montserrat.

1 comentário:

Custódia C. disse...

Menina Rosalina (será melhor dizer Meninas Rosalinas), tenho cá para mim,que não vão conseguir enganar a Montserrat. Como dizem ela não parece, mas é mesmo muito esperta. Nem a moça Sofia a engana
:):)
Uma delícia esta prosa!!!